Notas para uma ética hacker na cultura local

Rui Ibañez Matoso
6 min readFeb 25, 2024

José Ramón Insa Alba (2011)

Tradução do original publicado no blogue espacio rizoma1

[1] De acordo com a gíria, um hacker é “basicamente um especialista ou entusiasta de qualquer tipo. Alguém pode ser um hacker astrónomo.” Por que não um hacker cultural para “compartilhar informações”, “facilitar o acesso a informações e recursos”, “compartilhar habilidades e conhecimentos”… (A ética hacker e o espírito da era da informação)

Banksy

[2] Percebe-se que existem dois princípios na gestão da cultura local: aquele que tem o código aberto como referência e propõe estruturas de cooperação, coprodução, prototipagem… e aqueles que são gerados a partir do código proprietário com base na distribuição de espetáculos em qualquer um dos seus formatos (exposições, museus, concertos…). A ética hacker funciona a partir da primeira das visões, numa clara tentativa de integração do hard com o soft. Nanocultura, nanotecnologia.

[3] A capacidade de recombinar informação e conhecimento das estruturas sociais é a verdadeira fonte de inovação para a cultura local. São duas visões diferentes (em alguns casos compatíveis) que têm de coexistir: a visão enciclopedista de uma cultura herdada do Iluminismo e a visão wikipedista de uma cultura herdada do informacionalismo. Hoje encontramo-nos num ponto de inflexão que produz, por um lado, grandes intersecções criativas e, por outro, graves resistências burocráticas e administrativas.

[4] A capacidade de recombinação e reprodução acima mencionada e a sua flexibilidade, sendo integrada em processos abertos, representa uma grande oportunidade para o surgimento de novos processos, tanto teóricos como diretamente aplicáveis. Conectar conhecimento em todos os sentidos, tanto interna quanto externamente, entre instituições e sociedade.

[5] Insisto: a maior tecnologia está nos nossos cérebros. E as instituições dependem dos cérebros.

[6] O autismo da instituição produz monstros. Não é de forma alguma possível continuar a trabalhar a partir dos modelos institucionais herdados do século XIX. Nem em termos da sua relação com a sociedade, nem em termos da sua estrutura interna. O contexto é tudo, e não pode haver progresso real sem interação aberta. A estratégia de recombinação e a garantia de que nada pode ser feito sem uma relação aberta no seu sentido mais amplo.

[7] Contexto social, uso social, resultado social: três eixos de intervenção. O isolamento mencionado anteriormente junto com o controle daquilo que supõe que a sociedade necessita (o controle cultural das sociedades) supõe uma atitude que neste momento seria até ridícula se não fosse pelo facto de engendrar uma verdadeira provocação. A sociedade é cada vez mais extra-institucional.

[8] Surge a necessidade de que a soberania cultural tradicional das instituições seja partilhada: uma nova forma de cultura em rede que canaliza o processo de reestruturação sociocultural para longe do conhecido poder patriarcal.

[9] O trabalho atual das instituições públicas em matéria de cultura deveria ser o de laboratórios e não de distribuidores. O hackerismo cultural como fonte de inovação e criatividade. A sociedade é mais poderosa do que qualquer uma das suas instituições, basta acreditar e agir. Agir a partir do pensamento de código aberto, libertá-lo da propriedade, do marketing e do estado regularizador. Transformar o condicionamento da consciência em pensamento criativo.

[10] O princípio da auto-organização dos bens comuns. Qualquer pessoa pode colaborar contribuindo com suas ideias, com o seu conhecimento, a sua criatividade, uma comunidade aberta de hackers culturais que utilizam o hardware institucional como um espaço não proprietário para seus desenvolvimentos.

[11] O paradigma das centrais telefónicas pode servir como uma boa metáfora. Qual é a relevância hoje dos sumo-sacerdotes da cultura? Confrontamo-nos com esta disposição do poder. Talvez este seja mais difícil de vencer e de superar.

[12] O aspecto hacker da cultura local, também insisto, não pode ser reduzido a um comportamento “institucional”. Isto é um erro e constitui uma tentativa de disfarçar a atitude tradicional das instituições. O espírito hacker da cultura local nasce do interesse no entusiasmo que surge ao “fazer cultura”. O hacker vai muito além da estrutura institucional. Portanto, o hacker não pertence necessariamente a nenhuma estrutura. A cultura local tem seus hackers dentro e fora das instituições e essa condição de abertura é o que leva a novos modelos, criações, propostas, atitudes… a paradigmas exploratórios. O espírito hacker transcende as relações habituais entre indivíduo, trabalhador e administração.

[13] Espaços de criatividade como fórmula hacker? Imaginemos as instituições públicas como espaços de troca de ideias. Mutação impressionante! Criatividade não implica necessariamente criação. A prática não implica necessariamente atividade.

[14] O relógio de ponto baseia-se na gestão do tempo perdido.

[15] É óbvio que a fonte mais importante de produtividade na cultura é a criatividade. Podemos regulá-la no tempo e no espaço? A lógica da hierarquia também é quebrada pela ética hacker porque o trabalho não pode ser confinado à lógica habitual da supervisão. Ou à da autoridade asfixiante. A ideia do funcionário expandido encaixa perfeitamente no hackerismo cultural.

[16] A cultura proprietária, seja individual (direitos de autor e conexos) ou pública (instituições de acumulação a todos os níveis) desaparece, substituindo-se pela ideia de que todo o conhecimento é um bem público comum e que é um dever ético partilhá-lo e assegurar a sua máxima distribuição.

[17] A defesa da coletividade acima de qualquer outro princípio. Quando o medo não é necessário para garantir a subsistência, é absolutamente amoral não nos dedicarmos totalmente à busca de modelos de desenvolvimento que não visem alcançar a sociedade no seu todo.

[18] Sendo o desenvolvimento da cultura, no seu sentido social mais amplo, algo que se deve à participação comunitária, a contradição mais absoluta está em tentar privatizar qualquer um dos processos. Contudo, há, por parte das instituições, uma espécie de privatização do público a seu favor.

[19] O comunitarismo e o conectivismo como um desafio radical à ética unificada do Estado ou da propriedade individual.

[20] Um exemplo claro e simples: a Internet não teria sido possível sob a lógica da propriedade privada.

[21] O desenvolvimento da cultura local não é de forma alguma de natureza técnica (e refiro-me tanto aos gestores privados como aos gestores públicos). É aconselhável fugir dos modelos de programação fechados e reduzidos aos centros de poder, de qualquer poder, para passar a modelos de criação abertos em que a multiplicidade e a proposta inacabada permitem a construção permanente. Mais importante que o resultado final é o processo que permite, por sua vez, a geração de outras infinitas possibilidades.

[22] No hackerismo, a autoridade é diluída tanto no seu aspecto de poder e comando executivo como no seu significado de sabedoria máxima (a diferença também entre o sábio e o conhecedor). Na cultura aberta e na estrutura de trabalho hackeriana, não existe um resultado que os outros tenham de aceitar inevitavelmente. Trata-se de dissolver o princípio segundo o qual a autoridade impede (de uma forma mais ou menos evidente, mas sempre coerciva) a iniciativa e a crítica, em suma, a criatividade.

[23] Qualquer trabalho na cultura, na perspetiva da ética hacker, consiste num ciclo que retro-alimenta a aprendizagem e a investigação. Ninguém tem um saber absoluto, logo ninguém tem uma autoridade absoluta (se é que o saber é uma base para a autoridade). Além disso, esta autoridade, tal como na sociedade em rede, não é detida pela hierarquia organizacional, mas resulta do valor de cada indivíduo em função do seu conhecimento e da sua contribuição. Algo semelhante ao conceito de prestígio digital.

[24] Não é tarefa da instituição pública distribuir objetos culturais pré-programados (nem como produtos, nem como símbolos), mas sim facilitar a sua criação/produção. É absolutamente inaceitável que qualquer instituição se atribua o papel de infalível. São necessários modelos interativos que abarquem as diferentes verdades de uma sociedade múltipla e multifacetada. A criação coletiva como modelo e a crítica comunitária como crivo. A reflexão como sistema. O risco como referência.

[25] Possivelmente o ideal hacker de liberdades fundamentais está na direção oposta aos interesses das empresas e dos Estados em estabelecer controle sobre todos os tipos de movimentos, incluindo os do pensamento. Por outro lado, verifica-se que a grande maioria daqueles que detêm o poder, nas administrações públicas locais, de decidir sobre processos abertos não tem uma ideia clara sobre o que significam as redes ou tudo o que uma estrutura de comunicação aberta implica.

[26] O hacker público é um motor que reprograma o seu âmbito de competência e influencia o resto da organização para além do seu contexto: a) a rotina diária de trabalho não existe, há um fluxo dinâmico entre trabalho e paixão; b) o salário não é um valor por si só que motiva a atitude de trabalho; c) o verdadeiro valor está na utilidade do trabalho para a comunidade e portanto a essência é a criação; d) a atitude comunicativa reside nas relações e nas redes; e) a supressão da individualidade é alcançada através da criatividade compartilhada.

1https://espaciorizoma.wordpress.com/2011/03/09/670-2/

--

--

Rui Ibañez Matoso

Rui Ibañez Matoso is a researcher on new media and post digital technologies, ecological systems and cultural studies.