ABOLIR A CULTURA FÓSSIL
Artigo de Opinião (Rui Matoso, novembro 2023)
A principal ameaça à democracia não é a violência nem a corrupção ou a eficiência, mas sim a simplicidade. [Daniel Innerarity, 2020]
Num planeta fustigado pelo brutalismo bélico e por guerras culturais moduladas por múltiplas formas de violência simbólica, o exercício da política cultural enfrenta desafios transversais às suas metodologias e práticas. Urge refletir e reformular vetores de ação comuns a todas as vertentes, da política, da gestão e da programação cultural, visando a concretização efetiva e plena da democracia e da cidadania cultural1.
Como em quase tudo na vida, o positivo e o negativo — o mais e o menos — são cruciais ao regular funcionamento da sociedade e, muito particularmente, da esfera pública cultural. Enquanto a emergência climática reivindica menos aquecimento global, a emergência cultural requer mais ebulição do ambiente criativo de modo a combater o negacionismo originário da política cultural fossilizada.
Não tivesse sido a persistência anacrónica de autarcas com posturas jurássicas, a cidade idílica seria, em 2024, uma urbanização densamente ecológica e o meio criativo irradiava vitalidade cultural em cada bairro nas suas diversas pulsações e modalidades. Os direitos culturais e humanos, salvaguardados em teoria pela Constituição da República Portuguesa, estavam garantidos por uma orientação política sustentada na democracia cultural participativa. Os decisores políticos administravam estrategicamente os serviços públicos alinhado-os com a sustentabilidade das práticas culturais da sociedade civil, prescindindo assim da decrépita tendência para o “dirigismo cultural”, sintoma afinal tão emblemático da cultura fóssil e das monoculturas hegemónicas do antigo regime.
A transição política na governação municipal da cultura é praticamente nula, mais depressa de instalaram parques eólicos e fábricas de hidrogénio (quase) visando reduzir a pegada carbónica, do que se transita do paradigma de democratização/descentralização para o de democracia cultural/novas centralidades.
Em 2024 celebramos as cinquenta voltas ao sol de Abril, cinco décadas da revolução que aboliu a “ditadura espiritual” do bom gosto obrigatório para o povo, e que instaurou a liberdade cultural e a democracia municipal. Há 50 anos as autarquias foram investidas das mais ambiciosas expectativas democráticas, o poder democrático local. Da fase embrionária e experimental à atualidade, esperava-se que o exercício do poder político fosse mais participado pelos cidadãos, favorecendo um quotidiano de vivências plurais e uma cultura política de cidadania ativa, capaz de neutralizar a obediência e a submissão requeridas pelo autoritarismo prevalecente até então. Contudo, à macrocefalia da administração central acabou por suceder o microcefalismo da administração local.
Positivamente, as autarquias locais devem assumir um papel catalisador das forças sociais da comunidade, para que estas tenham capacidade de agenciamento, uma participação ativa e emancipada. Para tal será necessário, por um lado, criar espaços de debate, crítica e criatividade, onde os problemas locais sejam analisados com base no contributo e na experiência dos vários intervenientes. Pelo lado negativo, urge combater e impedir a monocultura e a sua visão substancialista da identidade cultural homogénea, cristalizada no protagonismo cultural do municipalismo tóxico.
A cultura, enquanto matéria de política pública, deve então ser entendida como capacidade ativa de cidadania, ou seja, como conjunto de ferramentas simbólicas e conceptuais de que os elementos de uma comunidade necessitam para lidar com a realidade difusa e complexa do mundo contemporâneo, e para elaborar novas estratégias de vida coletiva.
Em suma, é premente mudar a visão ornamental e distintiva da cultura para uma convivência cultural quotidiana no sentido mais amplo e não apenas no sentido artístico, identitário ou patrimonial. Nesse sentido, os municípios devem orientar o serviço público de cultura de modo a sustentar a vitalidade cultural do território, criando as condições necessárias ao desenvolvimento criativo e cultural, através de mecanismos e instrumentos, tais como: Criação de gabinetes locais de apoio a projetos culturais e criativos da sociedade civil — priorizando os mais jovens; Diversificar apoios e incentivar a pluralidade dos projetos culturais; Incentivo ao jornalismo cultural local; Conferir aos Conselhos Municipais de Juventude o seu efetivo potencial de participação democrática no âmbito da cidadania cultural e, entre outros, promover a programação colaborativa e participada dos equipamentos culturais através do debate coletivo e de novas propostas de filosofia programática e da sua operacionalização.
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1Consultar aqui (https://linktr.ee/esad_ppc_direitos_culturais) as múltiplas reivindicações estudantis (Caderno Reivindicativo) a propósito da conferência Youth-Action-Culture / Rumo à Democracia Cultural.